domingo, 30 de janeiro de 2011

Karl Marx

Texto publicado originalmente pela Revista Cult, em 12 de janeiro de 2011, no endereço: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/marx-e-a-sociologia/

Marx e a sociologia

Para Marx, o proletariado pode desempenhar um papel equivalente ao exercido pela burguesia
Publicado em 12 de janeiro de 2011

Ricardo Musse
Ilustração: André Toma
Na investigação da relação de Marx com a sociologia, não há como subestimar a importância do movimento crítico. Ao longo de toda sua obra, o exame das diversas teorias sociais prevalecentes desemboca, com base no exercício de uma crítica ao mesmo tempo imanente e transcendente, na delimitação de um território próprio denominado pela posteridade de “materialismo histórico”, “sociologia marxista” ou mesmo “sociologia ou teoria crítica”.
Durante o inverno de 1845-1846, refugiados em Bruxelas, Marx e Engels redigiram A Ideologia Alemã. O texto, no entanto, por uma série de motivos, não foi editado e permaneceu assim durante o período em que eles viveram. Numa breve apresentação de sua trajetória intelectual, no Prefácio ao livro Para a Crítica da Economia Política (1859), Marx comenta o manuscrito, destacando que “tratava-se de acertar contas com nossa antiga consciência filosófica. O propósito tomou corpo na forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana (…) Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto quanto já havíamos atingido o fim principal: a autocompreensão”.
Embora o contexto da referência permita inferir que o manuscrito continha um esboço da teoria ali exposta de forma sintética, Marx, fiel ao seu estilo negativo, prescinde dessa afirmação. A interpretação apenas literal dessas frases, predominante entre as duas primeiras gerações de marxistas, corroborou a tese de que se tratava de um momento superado de um itinerário que transitara da filosofia à economia política. Essa hipótese, no entanto, foi plenamente desmentida pela publicação do primeiro volume do livro, em 1926 (o segundo foi editado em 1932). As ideias apresentadas nesse Prefácio, e que se tornaram uma espécie de resumo oficial da teoria marxista da história, retomam quase que literalmente o texto do manuscrito de 1845-1846.
A Ideologia Alemã tornou-se desde então um texto essencial do corpus marxista. Nela delineia-se pela primeira vez de forma nítida o que pode ser considerado o programa do materialismo histórico, gestado por meio de uma crítica incisiva dirigida simultaneamente à filosofia, à teoria política, à historiografia, à economia política, à teoria social etc.
A atividade prática humana
A autocompreensão à qual Marx se refere surgiu, em grande medida, de um acerto de contas com Ludwig Feuerbach, o mais destacado dos filósofos pós-hegelianos. Nos 11 parágrafos das famosas “Teses sobre Feuerbach”, escritas provavelmente em maio ou junho de 1845 – portanto, alguns meses antes do início da redação de A Ideologia Alemã –, Marx, que havia muito já não era idealista, ao contestar o caráter passivo, abstrato e não histórico do materialismo (incluindo o de Feuerbach), destaca que a sensibilidade, a história e a vida social resultam da atividade prática humana.
Um ponto decisivo da divergência de Marx ante Feuerbach consiste na determinação do conceito de “alienação”. No quarto parágrafo, Marx afirma: “a autoalienação religiosa, o desdobramento do mundo em um mundo religioso e um mundo mundano (…) só pode se explicar pela autodilaceração e pela autocontradição desse fundamento mundano”. Desse modo, a questão da alienação, e assim da própria situa-
ção do homem, é deslocada de “um reino autônomo nas nuvens” ou da compreensão do indivíduo singular para a vida efetiva, que se desenrola como um nexo de relações sociais.
Por conseguinte, a tarefa mais urgente e impostergável para Marx, naquele momento, era delinear uma nova concepção, materialista, da história e da sociedade. Teoria essa que, não custa repetir, nasceu da convivência com e da crítica à filosofia pós-hegeliana, mas que, de certo modo, pode ser estendida a grande parte da tradição cultural e intelectual burguesa.
A estratégia de Marx e Engels para submeter à crítica os jovens hegelianos, evitando o risco de recair no jogo especular de uma crítica da “filosofia crítica”, passa pela remodelação do conceito de “ideologia” – concebido como um descompasso entre o que os indivíduos, grupos e sociedades imaginam ser e o que efetivamente são.
O esforço crítico vincula-se assim ao desenvolvimento de uma teoria apta a compreender os indivíduos efetivos em suas ações concretas, o que aponta para a necessidade de conhecer suas condições materiais de vida e as relações sociais aí engendradas. Esse programa, ao qual Marx se ateve ao longo de sua trajetória, foi levado adiante submetendo à crítica – imanente e transcendente – aquelas que são comumente apresentadas como as três fontes do pensamento marxista: a teoria social alemã, tal como configurada no idealismo alemão e no movimento dos jovens hegelianos; a teoria social inglesa, consubstanciada na economia política; e as vertentes da sociologia francesa iniciadas por Saint-Simon, com seus desdobramentos no socialismo utópico de Fourier e Proudhon.
Embora, em A Ideologia Alemã, Marx e Engels esbocem alguns traços da aplicação desse programa à história universal, o livro quase não trata do mundo moderno. O levantamento das principais determinações da sociedade capitalista tornou-se imprescindível durante a redação do Manifesto do Partido Comunista (1848).Para compreender o momento histórico, Marx expõe a história da gênese e do desenvolvimento do mercado mundial, assim como dos conflitos sociais e das oposições de classe que moldam esse cenário, delineando os principais pontos da sociologia marxista, numa exposição concisa das coordenadas econômicas, sociais, políticas e culturais do mundo moderno.
O Manifesto pode ser lido então como uma espécie de “dialética da modernidade”, salientando a contradição entre o dinamismo inerente ao desenvolvimento das forças produtivas (destacado na metáfora “tudo que é sólido desmancha no ar”) e a estática inerente às relações de produção, que reproduzem a cada momento as formas desiguais de apropriação da riqueza e de dominação social.
Marx apresenta o Manifesto como uma autoexposição do comunismo. Conjugado a essa tentativa de exposição teórica das premissas de um movimento político que mal entrara em cena e já invocava para si o papel de protagonista, Marx compôs um diagnóstico da modernidade que esquematiza, em linhas gerais, tópicos que só serão desenvolvidos detalhadamente em obras posteriores, particularmente no conjunto de textos projetados pelo próprio Marx como uma “crítica da economia política” e cuja formulação mais acabada consiste em O Capital.
Luta de classes
Dito em termos drásticos, de A Ideologia Alemã, bem como de seus inúmeros estudos sobre história, Marx tomou como pressuposto no Manifesto apenas um esquema mínimo, a tese de que “a história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes”. Trata-se, portanto, de trazer para o centro do relato da história humana o conflito, a “luta ininterrupta, ora dissimulada, ora aberta”, entre oprimidos e opressores.
Apesar do tom panfletário, inerente a seus objetivos práticos, políticos e pedagógicos, o Manifesto mantém a postura crítica em relação à filosofia da história de A Ideologia Alemã. Em lugar de estabelecer uma teleologia para o desenvolvimento geral da espécie humana, Marx, analisando em bloco o destino do mundo moderno, apenas aponta duas tendências, extraídas da observação do passado histórico, procurando evitar recair na ideia de uma necessidade inerente ao espírito ou em alguma forma de determinismo: “uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou uma derrocada comum das classes em luta”.
Na descrição de Marx, a “moderna sociedade burguesa não aboliu os antagonismos de classe”, mas antes colocou novas classes, novas condições de opressão, novas formas e estruturas de luta, sintetizadas no conflito entre burguesia e proletariado.
Marx associa o desenvolvimento histórico-social da burguesia, em especial sua constituição como força política, a uma série de acontecimentos que marcaram a gênese e os desdobramentos do mundo moderno. Desse modo, essa classe é apresentada como o produto de um longo processo, de uma série de revoluções nos meios de produção, transportes e comunicação, por meio do qual ela se desenvolve, economicamente, multiplicando seus capitais e, politicamente, empurrando para segundo plano as demais classes opressoras. Marx adverte assim que, ainda que as demais classes opressoras não sejam suprimidas, doravante quem dá as cartas nos rumos do desenvolvimento histórico e na luta política é a burguesia.
No Manifesto, o mundo burguês é compreendido como uma unidade contraditória entre fatores dinâmicos e invariância estática. O paradoxo de uma sociedade que não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, com eles, o conjunto das relações sociais é próprio do mundo moderno. Enquanto os antigos modos de produção assentavam-se, à maneira de uma tradição, na manutenção e conservação de relações fixas e cristalizadas, a sociedade burguesa se reproduz, mantendo-se idêntica somente ao preço de uma contínua transformação que, acarretando a obsolescência e uma incessante destruição de toda a estrutura de produção existente em determinado momento, subverte inclusive o cenário histórico e político.
Essa dinâmica, característica da modernidade, é apresentada e desdobrada no Manifesto sob a forma de um feixe de expansões que ocorrem simultaneamente, em direções e sobre domínios diferenciados. A descrição do papel “eminentemente revolucionário” desempenhado pela burguesia na história moderna pode ser concebida como uma história dos movimentos do agente histórico dessa expansão, o que explica, entre outras coisas, a forte carga irônica dessas passagens, muitas vezes interpretadas erroneamente como uma apologia da burguesia.
Marx descreve os movimentos segundo os quais o capitalismo extravasa o campo das relações puramente econômicas, espraiando-se para outras esferas da vida social. Esse processo caracteriza-se por uma inaudita mercantilização e reificação de todo o domínio social, atingindo inclusive o âmago da subjetividade.
Mas, ao mesmo tempo em que salienta o predomínio das relações mercantis e da reificação sobre o conjunto da vida social, Marx detecta outro movimento expansionista caracterizado pela colonização, ou melhor, pela penetração capitalista sobre áreas e regiões 
econômicas ainda não capitalistas – o que abrange desde áreas do mundo rural, situadas próximo do centro do capitalismo, até os territórios pré-capitalistas, situados nos confins do planeta.
Essa expansão, hoje denominada globalização, vincula-se de forma mais estreita, no Manifesto, com a fase do mercado mundial. Por “mercado mundial”, Marx designa tanto uma forma de concentração industrial como o domínio exclusivo do poder pela burguesia (na época do Manifesto, o recém-implantado Estado constitucional representativo).
Essas duas “expansões” são assinaladas, ao mesmo tempo, como expedientes a que a burguesia recorre para tentar superar as crises do capitalismo. Marx indaga: “Por quais meios a burguesia supera as crises? Por um lado, pelo extermínio forçado de grande parte das forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e da exploração mais metódica dos antigos mercados”.
A frase “exploração metódica dos antigos mercados”, outra vertente da expansão capitalista, alude à reformulação dos meios e das formas de produção, o que abrange desde a tecnologia empregada na produção até as formas de manejo da mão de obra no interior do processo produtivo. Esse processo, no entanto, não pode ser levado adiante sem a derrubada de obstáculos (jurídicos, culturais etc.) e sem uma intensificação da padronização específica da economia capitalista sobre as demais esferas do mundo social.
O proletariado
A exposição do proletariado, no decorrer do Manifesto, embora possa ser remetida ao quadro histórico-econômico próprio do mundo moderno, não privilegia as mediações econômicas, mas antes a história de sua formação política. De modo geral, Marx salienta que, na mesma medida em que a burguesia, ou melhor, o capital se desdobra, também o proletariado se desenvolve.
No Manifesto, Marx determina, de modo genérico, o proletariado como aqueles que “só subsistem enquanto encontram trabalho e só encontram trabalho enquanto seu trabalho aumenta o capital”. Esse modo de compreender a inserção social do proletariado destaca a submissão do mundo do trabalho à lógica econômica do mercado: os “operários, que têm de vender-se um a um, são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio e, por isso, igualmente expostos às vicissitudes da concorrência e às oscilações do mercado”.
A dinâmica da expansão, própria do capitalismo, afeta o proletariado no âmago da sua inserção (e integração) social, como força de trabalho, consolidando-se como um dos principais obstáculos à sua organização e formação política. Esse processo foi destacado por Marx como uma forma de reificação típica da situação do trabalho no capitalismo. Primeiro, o trabalhador perde sua autonomia, pela via da expansão da maquinaria e pela ampliação da divisão de trabalho no interior do processo de produção, tornando-se quase um mero acessório da máquina. Mas, sobretudo, ele encontra-se submetido, no interior da fábrica, ao “despotismo” do capital: “Eles não apenas são servos da classe burguesa, do Estado burguês; diariamente e a cada hora eles são escravizados pela máquina, pelo supervisor e, sobretudo, por cada um dos fabricantes burgueses”.
A formação política do proletariado afigura-se, portanto, como uma forma de superação, seja da alienação própria ao mundo do trabalho, seja dos resultados da incessante concorrência entre os trabalhadores gerada pela recorrente reprodução da mão de obra. Nesse sentido, um dos pressupostos práticos do Manifesto, a tarefa de contribuir para a organização do proletariado em um partido político, não pode ser visto como um objetivo descolado da necessidade de superar esses obstáculos.
Pode-se considerar que a aposta de Marx, recorrente ao longo do Manifesto, atribui ao proletariado a possibilidade de desempenhar na história papel equivalente ao exercido pela burguesia. Vale dizer que, para Marx, a classe operária tem a possibilidade de posicionar-se como agente determinante do destino histórico do mundo moderno.
Esse engajamento da classe operária em um projeto de transformação social não é apresentado como um resultado automático e necessário decorrente das condições econômicas e sociais da sociedade burguesa. Marx adverte que os incessantes esforços para organizar o proletariado em um movimento político são, a cada instante, contrariados pela concorrência entre os próprios operários, bem como pela reificação, condições inerentes a sua situação no capitalismo.
A generalização da forma-mercadoria dificulta não só a afirmação do proletariado como sujeito histórico, mas a própria reflexão acerca dos problemas inscritos no cerne da sociedade capitalista, uma vez que a reificação, originariamente atuante no mundo do trabalho, estende-se para todos os setores da sociedade.
Ricardo Musse é professor do
Departamento de Sociologia da USP
Perfil biográfico – Karl Marx (1818-1883)
 Karl Marx, num primeiro momento de sua trajetória, adere com entusiasmo àquela que ficou conhecida como a “esquerda hegeliana”, movimento de releitura do pensamento de Hegel (1770-1831), unido por um espírito crítico de recusa de qualquer tipo de transcendência, e centrado num interesse pelos indivíduos humanos, considerados os verdadeiros protagonistas do processo histórico. Superou, porém, essa posição, transformando a herança hegeliana no materialismo histórico, ou seja, numa visão de mundo baseada na concepção de que os eventos históricos são influenciados pelas relações sociais, em particular as relações entre classes, mais do que pelas ideologias.Marx nasceu em Tréveris, em 1818, no seio de uma família burguesa de origem judaica.Estudou em Bonn e em Berlim, doutorando-se com uma tese sobre a filosofia de Demócrito e Epicuro. Em 1843, casou-se com Jenny von Westphalen, jovem nobre que, repudiada por sua família, soube compartilhar a vida de lutas e privações do filósofo revolucionário.Depois de haver colaborado com a Gazeta Renana (um periódico de Colônia, com tendência moderadamente liberal), transferiu-se para Paris, em 1843, para participar, com Arnold Rouge (1802-1880), da fundação dos Anais Franco-Alemães, que representavam o interesse dos jovens hegelianos de expressar um juízo crítico sobre a cultura e a sociedade da época. Apenas o primeiro número da revista foi publicado. Em todo caso, os anos de sua estadia em Paris permitiram a Marx desenvolver intensos estudos, sobretudo de história e economia.Em 1844, conheceu Friedrich Engels (1820-1895), com quem estabeleceu imediatamente uma amizade sincera e profunda, que duraria toda sua vida e seria extraordinariamente construtiva, do ponto de vista tanto filosófico como político.Em janeiro de 1848, redigiu, junto com Engels, o famoso Manifesto Comunista para a Liga dos Comunistas. Quando estourou na França e na Alemanha o movimento revolucionário, Marx passou breve tempo em Paris, voltando logo a Colônia, onde colaborou com a Nova Gazeta Renana. Obrigado a emigrar, instalou-se com sua família em Londres, onde se dedicou a investigações de grande rigor científico, recolhendo elementos de história, economia e sociologia que lhe serviriam de base para escrever O Capital. Foram anos de dificuldades econômicas para Marx, aliviados pela ajuda financeira de Engels, que havia instalado uma indústria em Manchester. Em 1864, Marx fundou a Internacional dos Trabalhadores (conhecida, mais tarde, como a Primeira Internacional). Graças a esse êxito e ao grande prestígio adquirido no campo científico, a autoridade de Marx, como pensador e como organizador, consolidou-se cada vez mais, até sua morte, em 1883. A publicação dos volumes segundo e terceiro de O Capital, assim como de vários outros escritos de Marx, só foi possível graças à dedicação de Engels, que, depois da morte do amigo, recolheu cuidadosamente seus escritos, os reordenou e os preparou para a publicação.

Sociologia em Destaque

Texto publicado originalmente pela Revista Cult, em 12 de janeiro de 2011, no endereço: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/durkheim-e-a-vida-social-como-essencialmente-moral/

Durkheim e a vida social como essencialmente moral

O sociólogo tinha a consciência de que a validade de seu projeto precisava ser afirmada em diversas frentes
Publicado em 12 de janeiro de 2011

Alexandre Braga Massella
Ilustração: André Toma
Caso os autores aos quais atribuímos hoje o epíteto de pai ou fundador da sociologia soubessem da posição que a posteridade lhes reconheceu na gênese de uma disciplina, Durkheim talvez fosse o único que tomasse isso como o sinal de que seu projeto intelectual foi, de alguma forma, bem-sucedido.
Defensor intransigente da possibilidade de uma sociologia científica e autônoma, que tomasse de outras ciências apenas sugestões úteis, Durkheim tinha a consciência de que a validade de seu ambicioso projeto precisava ser afirmada em diversas frentes. A frente de batalha mais geral alinhava argumentos de ordem filosófica e metodológica em um discurso que abordava, do ponto de vista da fundamentação da sociologia, o problema clássico do conhecimento: a definição do objeto a ser estudado e da relação que o sujeito do conhecimento deveria manter com esse objeto. As Regras do Método Sociológico, publicado em 1894, é o coroamento desse esforço. A definição do fato social como maneiras de agir, pensar e sentir que se impõem ao indivíduo delimita o domínio da sociologia. Durkheim exige do sociólogo uma atitude de desconfiança em relação ao saber anterior de que todos dispomos sobre a realidade social, pelo mero fato de participarmos dela.
Permeia todo o livro uma ideia cara a Durkheim: há fatos que são o que são porque a sociedade tem as características que tem. Durkheim explorou de forma sistemática os atributos do meio social em suas explicações: o poder de atração que o grupo exerce sobre seus membros, o poder de regular a conduta do indivíduo, a frequência de interações são exemplos de fatores que caracterizam o meio social e que Durkheim empregou em seu clássico estudo sobre o suicídio.
Mas o discurso metodológico não era suficiente aos olhos de Durkheim. No seu entender, a reflexão metodológica não é anterior à ciência, sendo apenas uma explicitação e articulação de procedimentos já empregados pela prática científica. Ou bem a ciência existe, ainda que pouco consciente de seus princípios e de seus fundamentos, ou não existe e não será a reflexão metodológica que decretará sua existência. Daí Durkheim afirmar, em seus ensaios metodológicos, que a sociologia é um ponto de vista que vem se afirmando nas diversas ciências sociais, que desponta nos bons trabalhos de história do direito, da religião ou da economia. Não basta, portanto, a sustentação filosófica ou metodológica da sociologia; é preciso praticá-la, é preciso mostrar, por meio de resultados substantivos, por meio da explicação de problemas bem delimitados, que o método preconizado é fértil. A Divisão do Trabalho Social (1893), tese anterior a Regras do Método Sociológico, O Suicídio (1897) e As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) são as três grandes obras em que Durkheim desenvolveu, na prática da pesquisa, seu método.
Intervenção na vida social
O empenho de Durkheim em defesa da sociologia foi além dos aspectos teóricos e metodológicos. A relevância prática da disciplina e sua inserção institucional, isto é, seu ensino na universidade francesa, também mereceram sua atenção. “Nossas pesquisas não seriam dignas de uma hora de trabalho, se elas só tivessem um interesse especulativo”: a frase, escrita no Prefácio à primeira edição de A Divisão do Trabalho Social, sugere bem a importância que Durkheim dava ao problema da intervenção na vida social, embora não baste para entender a dimensão dessa intervenção ou sua articulação com a reflexão científica. A contribuição prática não se resumiria à identificação dos meios mais eficientes para a realização de fins estabelecidos por razões extracientíficas. A sociologia teria algo a dizer sobre os fins que orientam nossa conduta, embora não caiba a ela elaborar ou decretar novos ideais. Sua tarefa seria mais modesta: explicitar os ideais para os quais uma sociedade tende confusamente e explicá-los, mostrando como estão enraizados em certas condições de existência e como desempenham certas funções. A reconstrução das tendências evolutivas da sociedade permitiria entender a natureza das crises sociais. A sociologia, devidamente praticada, identificará quais valores e ideais estão em harmonia com as tendências gerais da evolução social e quais são estranhos ou contrariam tal evolução.
Exemplo dessa preocupação é a pergunta que orienta seu estudo sobre a divisão do trabalho social. Trata-se de saber se o ideal moderno da especialização, isto é, o ideal segundo o qual devemos nos especializar e nos tornar indivíduos capazes de desempenhar de forma satisfatória uma função determinada – indivíduos que se realizam cumprindo um papel especializado e limitado, sacrificando, portanto, algumas de nossas faculdades – seria um ideal em consonância com o avanço cada vez maior da divisão do trabalho social.
A contribuição prática que Durkheim esperava da sociologia está vinculada também à sua interpretação da realidade social e política da França. Nascido em 1848, em Épinal, na região da Lorena, Durkheim acompanhou, ao longo de seu desenvolvimento intelectual, o advento e as crises vividas pela Terceira República Francesa. A chamada Terceira República, proclamada em 1870 ainda em meio à Guerra Franco-Prussiana, fez da instauração de uma ordem social liberal uma de suas metas, o que significou a introdução de inovações institucionais consideráveis. Ampliar direitos civis e políticos, arquitetar um regime representativo eficaz, implantar um sistema de educação laico: tarefas árduas, menos pela novidade das reformas, algumas 
das quais apenas aceleravam mudanças em curso desde os anos 1860, do que 
pelas resistências conservadoras 
suscitadas. Para Durkheim, o que estava 
em jogo nesta nova ordem liberal era a conclusão da obra iniciada com 
a Revolução Francesa.
Quase um século depois, a nova ordem social iniciada com a revolução estava não só inconclusa como corria o risco de ser desfeita. Os conservadores ainda dispunham de posições-chave no exército, na burocracia estatal, na universidade e na Igreja. Eram adversários do regime republicano e dos valores mais caros à ordem liberal – a razão científica, o individualismo, a indústria – e não abriam mão, é claro, dos alicerces da ordem social conservadora: o domínio cultural da Igreja, um Estado autoritário e uma hierarquia social rígida e refratária aos influxos das ideias igualitárias.
A crítica revolucionária, o abalo causado pela Comuna de Paris em 1871 e a consolidação do socialismo como uma força política e social expressavam o descontentamento radical com a ideia de uma França liberal. Em face das pressões conservadoras e radicais, a França parecia mais uma vez destinada a oscilar entre as tentativas de transformação radical e as recaídas autoritárias e reacionárias. Na visão de Durkheim, as conquistas da sociologia poderiam ajudar na sustentação de uma nova doutrina liberal capaz de constituir uma base ideológica consensual para a Terceira República.
Mas Durkheim também é cauteloso quanto às contribuições da sociologia. A sociologia ainda está em sua infância e, portanto, precisa reconhecer o caráter limitado e provisório do conhecimento que obtém. Ela ainda precisa levantar muitos dados, aperfeiçoar suas técnicas, aprimorar seus recursos conceituais e teóricos. Precisa, sobretudo, superar o estágio das sínteses filosóficas que tentavam captar, prematuramente, a essência da vida social. Cabe à sociologia entregar-se ao estudo de problemas delimitados, divididos entre diversos especialistas. A compreensão da sociedade exige um trabalho de equipe.
A fundação da revista Année Sociologique, em 1898, da qual Durkheim participou ativamente, mostra bem como ele levava a sério a ideia da ciência como um empreendimento coletivo. A revista reuniu um conjunto de intelectuais simpáticos às ideias de Durkheim, ainda que não cegamente obedientes a elas. A consolidação de sua sociologia como escola de pensamento foi um dos resultados da revista. Dividida em várias seções que mapeavam o território da disciplina – sociologia jurídica, moral, religiosa, econômica –, a revista resenhava a literatura sociológica e publicava artigos originais (vários artigos de Durkheim foram publicados aí pela primeira vez).
A propagação da sociologia de Durkheim deu-se também pelos canais institucionais da universidade francesa. Não que esses canais estivessem prontos. A sociologia não era, na época, uma disciplina institucionalizada, isto é, não dispunha de um curso universitário em que fosse ensinada e nem sequer figurava no currículo de outros cursos. O próprio Durkheim tinha formação de filósofo e começou ensinando filosofia em liceus, atividade que exerceu de 1882 a 1887. Em 1887 foi criado, na Universidade de Bordeaux, um posto em “ciência social e pedagogia” especialmente para Durkheim, que lecionou aí cursos sobre a educação, a família, a religião e o socialismo, alguns dos quais publicados postumamente. Em 1902, ingressou na Sorbonne, novo passo na institucionalização da disciplina.
A interpretação 
da sociedade moderna
A concepção de sociedade elaborada por Durkheim faz da vida social um fenômeno essencialmente moral. Para Durkheim, sempre que há sociedade há altruísmo e, portanto, vida moral. Nossa conduta propriamente social não se orienta apenas para a satisfação de nossos interesses e não faz dos outros um meio para a obtenção de nossos fins. Isso não quer dizer que inexistam conflitos na sociedade, mas que a fonte deles é o mundo inerentemente desregulado dos interesses econômicos, mundo que a sociedade, em condições normais, tende a regular. A vida social exige de nós sacrifícios, renúncias, mas o grupo possui um prestígio e uma autoridade tal que desempenhamos nossos deveres motivados pelo sentimento de obrigação, pelo senso do dever e não pelo temor às sanções.
A aplicação dessa visão de sociedade ao mundo moderno exige que Durkheim conteste a visão de sociedade presente na economia clássica. Durkheim precisa mostrar que não é suficiente, para dar conta da coesão que a sociedade moderna apresenta, considerá-la como resultado de uma miríade de ações egoístas, em que os indivíduos agem orientados apenas pela maximização de seus interesses. É contra essa visão, predominante na economia e no liberalismo clássicos, que Durkheim se volta em A Divisão do Trabalho Social. Sua ideia é que a divisão do trabalho não é apenas um fenômeno econômico, como queriam os economistas, mas um fenômeno social e, portanto, gerador de vínculos de solidariedade. A divisão do trabalho não gera apenas interdependência objetiva, no sentido de que em uma sociedade em que o trabalho social está dividido dependemos uns dos outros para a satisfação de nossos interesses. Durkheim quer ir além dessa ideia, já devidamente explorada pelos economistas clássicos. A divisão do trabalho teria um efeito muito maior, alcançando as camadas mais profundas da consciên-
cia moral: além de fazer com que os homens se ajudem mutuamente, quer queiram quer não, faz com que se respeitem, gerando um sistema de obrigações morais. Participando da divisão do trabalho social, cada membro da sociedade sente a importância dos demais, compreende que ninguém basta a si mesmo e que são todos parte de um todo maior. É esse efeito moralizador que Durkheim ressalta em sua reação à interpretação econômica da divisão do trabalho, que enfatizava muito mais os aspectos materiais, como o aumento de produtividade.
A divisão do trabalho é um processo que atravessa a história da sociedade humana, que não começa em um momento preciso, mas vem se afirmando ao longo do tempo e atinge na sociedade moderna um ponto culminante. Como fonte de moralidade e, portanto, de ordem social, cabe esperar que a sociedade moderna, que testemunha o auge desse processo, se beneficie de suas virtudes morais. Durkheim sabe, porém, que a sociedade moderna é permeada por conflitos e que o conflito entre capital e trabalho é um dos mais ameaçadores à ordem social.
Durkheim tratou de alguns problemas sociais característicos da sociedade moderna, mas não os associou à divisão do trabalho como tal e sim ao que chamou de formas anormais da divisão do trabalho. A raiz dos problemas não estaria no princípio estrutural que dá sustentação à sociedade moderna – a divisão do trabalho social –, mas no fato de que esse princípio estrutural ainda não pode gerar todos os seus efeitos benéficos, seja porque não teve tempo suficiente para isso, seja em razão dos obstáculos apresentados por arranjos institucionais tradicionais.
Uma das formas anormais de divisão do trabalho é a que Durkheim chama de divisão forçada do trabalho. A divisão do trabalho social envolve dois princípios estruturais que variam historicamente e que podem se tornar fonte de instabilidade. De um lado, há uma classificação social que confere recompensas materiais e simbólicas distintas às diferentes ocupações, classificação que, em cada momento histórico, emprega critérios mais ou menos consensuais. De outro lado, há um princípio que organiza a distribuição dos indivíduos nas diversas ocupações. Se no passado critérios vinculados ao nascimento presidiam essa distribuição, para a sociedade moderna o único critério legítimo seria o mérito. Assim, quando um indivíduo não ocupa, no interior da divisão do trabalho social, a posição que melhor corresponderia às suas capacidades naturais e, portanto, às suas aspirações – e o vínculo entre capacidades e aspirações é um dos pressupostos duvidosos em todo esse raciocínio de Durkheim –, então teríamos uma divisão forçada do trabalho, no sentido de que ela é experimentada como ilegítima e só pode ser sustentada pela força. Nas condições modernas, a igualdade de oportunidade é, assim, crucial para que a divisão do trabalho social seja fonte de coesão e não de insatisfação. A instituição da herança, ao instaurar condições iniciais desiguais na busca pelas ocupações mais valorizadas, condições desiguais que não refletem o mérito do indivíduo, seria um arranjo institucional contrário aos valores da sociedade moderna. Há vários pressupostos complicados nesse raciocínio de Durkheim. A ideia de desigualdades naturais, que nada deveriam aos processos de socialização, é um deles, mas não o único nem o mais duvidoso. A crença no caráter consensual da classificação social parece desconsiderar a possibilidade de os valores que presidem essa classificação não serem mais do que a expressão de preconceitos de classe. Cabe perguntar ainda se Durkheim não desconsiderou o conflito potencial entre as tendências igualitárias que atribuiu à sociedade moderna e a proliferação de posições desiguais e distinções de prestígio alavancada pelo avanço da divisão do trabalho.
As objeções não invalidam o ponto essencial apontado por Durkheim. A divisão do trabalho social está associada a uma classificação social que define, para os diversos grupos sociais, o legítimo nível de aspirações. É esse elemento de ordem moral, que aqui se revela na estratificação da sociedade instaurada pela divisão do trabalho, que a sociologia de Durkheim tentou estudar de forma objetiva em suas diversas manifestações.
Alexandre Braga Massella
é professor da USP
Perfil biográfico – Émile Durkheim (1858-1917)
 Se a consagração do termo “sociologia” deve-se a Auguste Comte, é com Émile Durkheim e a escola que ele formará em torno da revista L’Année Sociologique que a sociologia francesa conhecerá um forte impulso no fim do século 19. Ainda que ele não seja o primeiro sociólogo francês, foi o primeiro a procurar fazer da sociologia uma disciplina autônoma, distinguindo-a de outras ciências, 
como a psicologia, por exemplo.Em seu dizer, a sociologia não é nem deve ser filosofia da história, que pretenda descobrir as leis gerais do “progresso” da humanidade. Também não é nem deve ser metafísica, julgando-se em condições de determinar a natureza da sociedade. Ela é a ciência dos “fatos sociais”, modos de agir, pensar e sentir exteriores aos indivíduos e dotados de poder de coerção em virtude do qual se impõem.Formado na escola do positivismo, Durkheim define o “fato social” como algo sui generis, uma totalidade não redutível à soma de suas partes. Essa definição lhe permite dissociar o individual do coletivo e o social do psicológico, fundando logicamente as condições de possibilidade de uma ação da sociedade que se impõe sobre os indivíduos.Nascido em Épinal (França), em 1858, Durkheim pertencia a uma linhagem de oito gerações de rabinos. Assumindo-se, porém, como agnóstico, recusa-se a tornar-se rabino e entra na Escola Normal Superior, onde encontra personalidades como Henri Bergson (1859-1941) e Jean Jaurès (1859-1914). Essa formação permite-lhe inscrever-se numa dupla tradição cultural judaica e clássica. Torna-se professor em Bordeaux, em 1887, encarregado especialmente das aulas de pedagogia e ciências sociais.Jovem professor, Durkheim é enviado à Alemanha, onde é profundamente marcado pelo funcionamento das universidades e pelos filósofos que se interessam pelo papel do Estado moderno. De volta a Bordeaux, Durkheim começa a redação de suas obras de sociologia, disputando, então, com Gabriel Tarde (1843-1904) e René Worms (1858-1917) a hegemonia intelectual sobre a disciplina nascente. A escola durkheimiana termina por se impor, graças aos seus ideais intelectuais e institucionais.
Em 1898, Durkheim funda a revista de ciências sociais L’Année Sociologique e, em 1902, é nomeado professor da Faculdade de Letras da Universidade de Paris, onde desempenha o papel de consolidar a sociologia como disciplina universitária. Em matéria de política, Durkheim permaneceu bastante discreto. Foi membro fundador da Liga Francesa para a Defesa dos Direitos do Homem e sustentou, ocasionalmente, teses socialistas-reformistas.
Desde o início da Primeira Guerra Mundial, Durkheim integra a União Sagrada (movimento de aproximação política que uniu franceses de todas as tendências, políticas ou religiosas, no início da guerra) e torna-se secretário do Comitê de Estudos e de Documentação sobre a guerra, presidido por Ernest Lavisse (1842-1922). O filho de Durkheim, André, morre em combate, em dezembro de 1916. Durkheim cai, então, numa profunda tristeza e isso talvez explique sua morte precoce em 1917.

Positivismo

Textos originalmente publicados pela Revista Cult, publicado em 26 de janeiro de 2011, no endereço: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/auguste-comte/

Auguste Comte

Auguste Comte: o fundador da sociologia ou física social
Publicado em 26 de janeiro de 2011

Ilustração: André Toma
A maioria dos seres humanos, por ser dominada pela afetividade, poderia ter sua existência moldada conforme as exigências da doutrina social do “progresso dentro da ordem”
Lelita Oliveira Benoit
Seduzido pela personalidade do nobre decadente Henri de Saint-Simon (1760-1825), Auguste Comte aceitou ser, a partir de 1817, seu secretário particular por uma quantia mensal de 300 francos. Contudo, logo após o início da colaboração, começou a se desenhar o desentendimento entre o mestre e o discípulo. O jovem secretário tinha como tarefa transformar em textos o pensamento do mestre. No entanto, começou a desenvolver ideias próprias, entrecruzando-as com aquelas que deveria reproduzir. É dessa época a primeira e mais sintética fórmula positivista: “Tudo é relativo, eis o único princípio absoluto”.
As raízes contraditórias do positivismo
Foi também nesses anos de juventude que Comte escreveu um texto, até hoje pouco conhecido, intitulado A Indústria (1817). Não era um texto qualquer. O jovem escritor Comte, em estilo límpido, desenhou o projeto esperado pelo mestre Saint-Simon. Acreditava que somente aprofundadas reflexões políticas, seguidas da elaboração de um plano de “reorganização social”, poderiam erradicar a anarquia que, tendo começado em 1789, com a Revolução Francesa, permanecera até o início do século 19. A Indústria deveria se tornar a primeira pedra do edifício de uma nova e grande Enciclopédia destinada a guiar a reorganização social futura em bases não anarquistas. Em A Indústria, encontram-se reflexões que anunciam a doutrina socialista posterior (como o projeto do planejamento da economia), entrecruzadas a conceitos já propriamente do relativismo positivista. Esse projeto foi abandonado por Comte logo em 1819, mas iniciava-se ali a autêntica história da filosofia positivista.
Ainda naqueles anos de juventude, Comte escreveu outro ensaio, bem mais célebre, no qual são desenvolvidos princípios positivistas. Intitulava–se Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade (1822) ou, simplesmente, Opúsculo Fundamental. Desenha-se, nesse ensaio, um vasto plano para reorganizar a sociedade francesa mergulhada na crise e na anarquia posteriores à Revolução Francesa. Após aprofundadas reflexões sobre a natureza espiritual da crise europeia, Comte procura se fazer escutar pelos cientistas que, conforme pensava, constituíam a única autoridade respeitada na Europa decadente, sendo o único poder capaz de dirigir a reorganização social, para convencê-los a tomar em mãos o poder social ou, nas palavras de Comte, ensinar-lhes “a tratar a política de maneira positiva”.
Elabora então Comte, pela primeira vez, o mais célebre de todos os seus conceitos, a teoria ou lei dos três estados. Segundo o positivismo, o espírito humano necessariamente se desenvolveu no decorrer de três fases ou estados: o teológico, o metafísico e o positivo. A expressão “o espírito humano” significa, bem restritamente, “conhecimento científico”. Assim sendo, ao se referir aos três estados do espírito humano, Comte nos remete, acima de tudo, a certas fases da história das ciências. A lei dos três estados, assim concebida, seria um conceito filosófico “compreensível para os cientistas”. De forma sintética, Comte expõe-lhes a história do espírito humano, como se segue: “Pela própria natureza do espírito humano, cada ramo de nossos conhecimentos está necessariamente obrigado, em sua marcha, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes; o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; enfim, o estado científico ou positivo”.
O estado teológico permaneceu enquanto a humanidade, por meio de seus sábios, fazia poucas observações realmente positivas, ou seja, fundadas em observações efetivas dos fenômenos naturais. Como então os fatos conhecidos eram poucos, somente era possível ligá-los por meio de “fatos inventados”. Desse modo, naquele estágio inicial das ciências, para explicar as leis que regem os fenômenos naturais, os sábios recorreriam a “agentes sobrenaturais”. Mas, de qualquer modo, ao menos provisoriamente, as explicações teológicas ajudaram a inteligência humana a sair do estado de torpor e debilidade, próprio da ignorância primitiva, e se aventurar em novas observações, em busca de novos conhecimentos.
O segundo momento ou estado do desenvolvimento das ciências é chamado pelo positivismo de “metafísico” e teria um “caráter bastardo”. Aliás, a palavra “bastardo” parece bastante adequada para qualificar o estado metafísico: diz-se que é bastardo aquilo que é híbrido, que resulta, como nos conhecimentos metafísicos, de enunciações que entrecruzam ideias teológicas com ideias positivistas. Na história do espírito humano, o estado metafísico teria ocorrido quando a ciência fazia tentativas de ligar os fatos por meio de ideias que não são completamente sobrenaturais, mas que não são inteiramente naturais e que são causados por “entidades ou abstrações personificadas”. Por exemplo, para explicar os fenômenos observados no mundo físico, orgânico e bruto, os sábios metafísicos recorrem à natureza, ou seja, a uma espécie de entidade metafísica ou abstração personificada, relativa ao conjunto dos fatos físicos. Na verdade, escreve Comte, o espírito humano, quando no estágio metafísico, se bem que procurando limitar a absurda pretensão de tudo conhecer, restringindo-se aos fatos observáveis, ainda assim tem injustificáveis ambições de conhecer “pelas causas absolutas”.
O que caracterizaria o último estado teórico – o estado positivo – seria que, em sua vigência, os sábios passam a admitir que há limites intransponíveis para a capacidade humana de conhecimento. Imbuídos de tal genuíno espírito positivo, explica-nos Comte, os sábios pretendem, no exercício da ciência, apenas conhecer o que está dado – os fatos e suas leis positivas –, sem se preocupar com a explicação pelas causas e os fins últimos. Desse modo, o conhecimento científico não poderia avançar além de limites claramente estabelecidos, ou seja, nada se poderia conhecer senão as leis de coor-
denação e sucessão dos fenômenos naturais, deduzidas dos fenômenos observáveis.
Segundo Comte, o estado positivo seria o definitivo; tendo-o atingido, o espírito humano não alcançaria patamar mais elevado. Aliás, a história do desenvolvimento progressivo das ciências seria ela própria um fato positivo e observável na história interna de cada ciência. Teria sido com base nessas observações epistemológicas que o positivismo pôde estabelecer a própria lei dos três estados.
Portanto, os estados do espírito humano reduzem-se a modos ou métodos de conhecimento, e a lei dos três estados da ciência foi pensada por Comte, antes de tudo, como uma categoria epistemológica, ou seja, relativa à filosofia das ciências. Como veremos a seguir, é sobre esse fundamento epistemológico que é pensada e construída a física social ou sociologia, nas páginas da obra mais importante de Comte, publicada em quatro volumes, o Curso de Filosofia Positiva (1830-1842).
As raízes biológicas da doutrina positivista do “progresso dentro da ordem”
Refletindo sobre a filosofia positivista, Herbert Marcuse, em seu livro Razão e Revolução, observa que, do ponto de vista da filosofia ocidental, desde os gregos, a expressão “filosofia positivista” não passa de uma contradição nos termos, pois nela desaparece o conteúdo negativo que sempre foi o cerne da filosofia ocidental. Nesse sentido, física social ou sociologia nada mais são do que a continuidade da filosofia positivista; as três palavras recobrindo um único significado: a afirmação daquilo que é, sem sombras negativas, sem obscuridades. Portanto, podemos dizer que o Curso de Filosofia Positiva concretiza o plano filosófico destinado aos cientistas da Europa, sendo ao mesmo tempo a exposição da física social e da sociologia. Já em sua juventude, Comte tinha lido e discutido o célebre livro Esboço para um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano, escrito por seu antecessor e inspirador, o teórico e ativista da época do Iluminismo Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet (1743-1794).
Com base nos conceitos condorcetianos, vinha construindo uma das pedras fundamentais do abrangente campo teórico do positivismo, o conceito de desigualdade. Mas o olhar comtiano, de qualquer modo, manifestava a gênese do declínio do século 18. Segundo comenta Comte, seria necessário abandonar as teses revolucionárias de Condorcet sobre o desaparecimento da desigualdade, por meio de novas revoluções, posteriores à Revolução Francesa. Na verdade, escreve Comte, os seres humanos são, entre si, naturalmente desiguais e assim deve permanecer a sociedade por eles formada, em todas as épocas.
Mas esse “natural”, que determina o caráter de imutabilidade da desigualdade, é muito mais a manifestação de um dado fisiológico do que uma constatação pura e simples de uma realidade social. Na verdade, para Comte, a desigualdade tem sua fonte na natureza fisiológica do homem e assim se torna objeto privilegiado de uma nova ciência. Até agora, existiu uma “física dos corpos brutos” (ou seja: a astronomia, a física propriamente dita, e, em certo sentido, a química) e uma “física dos corpos organizados” (ou seja, a biologia, como história natural, fisiologia e anatomia). Contudo, no século 19, transpassado por permanente anarquia política, se colocava uma física social como estudo das leis imutáveis da sociedade, ou seja, as “leis do progresso dentro da ordem”.
Em outras palavras, isso quer dizer que, como totalidade orgânico-biológica, a sociedade deve ser objeto de uma ciência positiva e ser estudada com a mesma objetividade e neutralidade com que os astrônomos, físicos, químicos e biólogos tratam seus respectivos objetos. Contudo, somente a partir de 1830, com os quatro volumes do Curso de Filosofia Positiva (1830-1842), esse vínculo entre a desigualdade-cérebro se revela nos textos de Comte com peso determinante.
Naqueles anos de juventude de Comte, viajava pelo Europa um famoso médico e anatomista austríaco, Franz Joseph Gall (1758-1828), ministrando aqui e ali cursos de fisiologia e anatomia e chegando a certas conclusões que eram consideradas contrárias à religião cristã. Em suas aulas, Gall demonstrava que as funções fisiológicas do cérebro podem ser descritas como sendo a sede das faculdades intelectuais e morais. A cranologia e sua “teoria das localizações”, que mais tarde serão chamadas de frenologia por Forster e Spurzheim, foi inteiramente desenvolvida por Gall. Ironicamente comentou Hegel, na Fenomenologia do Espírito (1806), que os frenólogos, entre os quais Gall, pensavam que “a razão é um osso”. Recomenda Hegel que os frenólogos abrissem seus próprios crânios para verificar a veracidade de tais afirmações! Ironia à parte, Comte entusiasmou-se com a frenologia, expondo uma versão particular dessa doutrina no Curso de Filosofia Positiva. A frenologia aparece ali como fundamento da classificação social ou da ordem social.
Na “Lição 45” do Curso de Filosofia Positiva, Comte expõe a teoria frenológica de Gall, que considera de valor decisivo para o progresso da biologia. A frenologia, como nos explica Comte, era uma tentativa de estudar, do ponto de vista positivo, “a inteligência humana”. De fato, segundo Gall, as faculdades intelectuais e morais teriam origem orgânica, devendo, por conseguinte, ser objeto dos estudos fisiológicos.
É fácil imaginar o escândalo causado então pela frenologia. De acordo com os ensinamentos de Gall, não existiria, propriamente falando, o “eu”, a “consciência”, a “alma” ou qualquer outra forma de subjetividade humana. Cada capacidade intelectual ou sentimento moral seria, segundo Gall, de natureza puramente fisiológica, constituindo diversos “órgãos cerebrais” contíguos, mas distintos entre si. A unidade a que chamamos “eu”, “alma”, “consciência” seria, portanto, uma ilusão ou tão somente fantasmas metafísicos. Na verdade, tais unidades metafísicas nada têm de misteriosas, sendo explicáveis como sendo o resultado da participação conjunta, nos nossos atos morais e pensamentos, de diversos órgãos cerebrais.
Desde a juventude, nas cartas ao amigo Valat, Comte manifestou grande entusiasmo pela obra de Gall e acreditou que, com o advento da teoria frenológica, começava se apagar o último vestígio da metafísica ocidental, de Descartes em diante. Com as descobertas frenológicas, também o estudo das faculdades intelectuais e morais do homem teria chegado ao seu estado positivo, escreveria Comte nas obras de maturidade, ou seja, no Curso de Filosofia Positiva e também no Prefácio do Sistema de Política Positiva (1851-1854).
Havia, contudo, divergências entre os frenólogos, a principal delas aquela relativa às “localizações das faculdades humanas”. O próprio Comte toma partido em uma dessas polêmicas, sobre a existência de um “órgão do roubo”. O desejo inato de se apropriar das coisas alheias – escreve Comte – “é uma aberração do sentimento da propriedade, este sim, verdadeiramente natural ao homem”. De qualquer modo, Comte acreditava que, no futuro, quando as análises anatômicas do cérebro fossem mais precisas e sofisticadas, com certeza poderíamos então definir exatamente a localização fisiológico-cerebral dos sentimentos morais e das capacidades intelectuais humanas.
De acordo com os estudos anatômicos de Gall, tinha sido possível saber, sobretudo, que as faculdades propriamente humanas – as faculdades intelectuais –, se comparadas ao restante da escala animal, seriam as mais fracas entre todas. Segundo a frenologia, como nos explica Comte, a porção mais volumosa e animal do cérebro humano localiza-se na parte posterior do crânio. Ora, exatamente como ocorreria nos outros animais superiores, aquela parte maior do cérebro seria o simples prolongamento da coluna vertebral. Com essa descoberta frenológica, seria possível concluir que, nos seres humanos, como ocorre nos outros animais superiores, a sede dos sentimentos morais ou afetividade localiza-se na região cerebral posterior e mais volumosa. Em contrapartida, a parte do cérebro “mais humana”, que se localizaria na região frontal do crânio, além de menos volumosa, seria também, segundo a expressão de Comte, a menos enérgica. Segundo Gall e seu discípulo Comte, naquela região cerebral de menor extensão e de atividade mais fraca é que estariam localizadas as faculdades intelectuais superiores.
A estática sociológica ou teoria positiva da ordem
Fundamentando-se em tais questionáveis descobertas da teoria frenológica das localizações cerebrais, Comte desenvolveu conceitos centrais da estática sociológica (ou teoria positiva da ordem). No Curso de Filosofia Positiva, ele afirma que a maioria dos seres humanos jamais desenvolverá a parte frontal – e mais humana – do cérebro e, além disso, sede das faculdades intelectuais superiores. A maioria ficará limitada eternamente aos desenvolvimentos da afetividade e dos sentimentos morais, cujos órgãos estão localizados na região cerebral posterior, mais volumosa e mais animal.
Esse estado pouco definido entre a animalidade e a humanidade, no qual se encontraria a quase totalidade dos seres humanos, não era, contudo, segundo Comte, algo que devesse causar preocupações. Do ponto de vista da harmonia, ou seja, da ordem social, na verdade, era bom que assim fosse. A maioria dos seres humanos, por ser dominada pela afetividade, poderia ter sua existência moldada conforme as exigências da doutrina social do “progresso dentro da ordem”. Por outro lado, a “elite da humanidade”, constituída pelo número reduzido daqueles que teriam desenvolvido a parte frontal do cérebro, deveria se dedicar às atividades intelectuais do raciocínio, vez ou outra fornecendo à sociedade “novos Sócrates, Homeros ou Arquimedes”.
Não é estranho, portanto, que, pouco a pouco, entrelaçando verdades positivas desse e de todo tipo, a sociologia comtiana tenha se transformado em religião da humanidade, nos anos posteriores a 1848. O começo contraditório abandonado afinal se relacionou com o fim dogmático, ou como escreveu Alfred de Vigny, o poeta predileto de Comte: “O que é uma grande vida? É um pensamento da juventude realizado na idade madura”.
Lelita Oliveira Benoit é professora de filosofia do
 Centro Universitário São Camilo
Perfil biográfico – Auguste Comte (1798-1857)
 Realizando uma curiosa mescla de motivos vindos do Iluminismo e do romantismo, Auguste Comte (Isidore Marie Auguste François Xavier Comte), estreitamente ligado às correntes do socialismo utópico e às grandes escolas científicas criadas pela Revolução Francesa, inaugurou uma das vias filosóficas mais características do século 20: o positivismo. Trata-se de um movimento orientado para a exaltação dos fatos em oposição às ideias, das ciências experimentais em oposição às teóricas, e das leis físicas e biológicas em oposição às construções filosóficas. Nascido em Montpellier, ingressou aos 16 anos na Escola Politécnica, em Paris, onde se sustentou dando aulas particulares de matemática. Foi secretário do filósofo e economista Saint-Simon (Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon, 1760-1825), mas logo obteve sua independência intelectual.
O período mais fecundo para a atividade filosófica de Auguste Comte situa-se ente 1830 e 1842. Durante esse tempo, publicou os seis volumes de seu Curso de Filosofia Positiva, que lhe deram fama não somente na França, mas sobretudo na Inglaterra. Conta-se que ele produziu essa obra sem notas nem outras leituras. Terminada a reflexão, ele redigia e enviava os trabalhos para a impressão. Contudo, o Curso de Filosofia Positiva não serviu para que ele fosse nomeado professor titular na Escola Politécnica, tal como esperava. Ao contrário, os matemáticos dessa instituição, ofendidos porque a obra não reconhecia à sua ciência uma posição de privilégio, o fizeram mesmo perder o cargo de examinador. Comte, assim, viu-se novamente obrigado a viver de suas aulas particulares. Nos últimos anos, alguns amigos e admiradores franceses e ingleses – entre eles John Stuart Mill (1806-1873) – aliviaram suas condições precárias com uma pequena pensão.
Vítima de uma crise de nervos, Comte atravessou um período de prostração física e mental. Restabelecido, conheceu Clotilde de Vaux em 1845, vivendo então uma profunda reciprocidade de sentimentos. A relação durou apenas um ano, truncada pelo falecimento de Clotilde, mas continuou a inspirar Comte, em particular sua extensa obra, em quatro volumes, Sistema de Política Positiva ou Tratado de Sociologia para Instituir a Religião da Humanidade (1851-1854). Em 1852, aparecia também seu Catecismo Positivista ou Exposição Sumária da Religião Universal.
Essas duas obras representam a última fase do pensamento de Comte. Nelas, ele se dedica a fundar uma nova religião, mas no sentido de uma religião da humanidade. Alguns dos que haviam acolhido com entusiasmo sua filosofia positivista seguiram-no na evolução “religiosa” de seu pensamento. Logo se levantou o incômodo problema de saber se a “religião da humanidade” deveria ser tomada como mero produto de uma mente exaltada ou como uma consequência efetiva das concepções filosóficas sustentadas pelo autor no período precedente.
Comte faleceu em 5 de setembro de 1857, em Paris.

domingo, 6 de junho de 2010

JORNALISMO E NOVAS TECNOLOGIAS

Com as novas tecnologias o jornalismo passa por transformações indispensáveis e torna-se fundamental discutir a sua realidade contemporânea, num fluxo de informação ininterrupto, numa aldeia global. A rigor, como é produzir notícias neste universo social de complexidade? A internet cria um novo espaço para a comunicação? 

O que de fato deve afirmar é que as novas mídias promovem mudanças na atualidade e aponta para novos rumos comunicacionais. Vale a pena o debate que está sendo feito e deverá render ainda muitas discussões e novos caminhos. Entrevista Revista Cult on-line traz uma boa análise sobre o tema, com Zuenir Ventura, acessado dia 6 de junho de 2010.

O jornalismo do século 21

Zuenir Ventura discute o jornalismo praticado nos últimos 10 anos
Publicado em 01 de junho de 2010

Zuenir: Em todas as instâncias desse país nós vivemos uma espécie de desprezo pela expressão verbal

*Por Wilker Sousa
Fotos: Anderson Silva

Notícias produzidas em tempo real na tentativa de apreender um mundo complexo cujas fronteiras, em face do universo digital, há muito desapareceram. Lidar com tecnologias que ampliam o acesso à informação e ao mesmo tempo restringem a notícia a textos exíguos. Essas são algumas das questões que vêm à tona quando se propõe discutir a atividade jornalística contemporânea.
Na tarde do último sábado (29), esse foi o tema do debate Cena Contemporânea – O jornalismo dos Primeiros 10 anos do século 21, presente no XIII Fenart (Festival Nacional de Arte), realizado em João Pessoa. Ao longo de três horas, os jornalistas Marcela Sitônio, Jô Mazarollo e Gonzaga Rodrigues (da imprensa local) juntamente com o jornalista e escritor mineiro Zuenir Ventura analisaram os impactos das tecnologias recentes no cotidiano do jornalista e em que medida suscitam novas maneiras de se pensar e de se fazer jornalismo. Ao final do debate, Zuenir Ventura concedeu entrevista à CULT, leia a seguir.

CULT – Em tempos de twitter e da avalanche de informações a que o indivíduo é submetido, ainda há público leitor para grandes reportagens?
Zuenir Ventura – Eu acho tudo isso melhor do que não escrever e melhor do que não ler, mesmo sabendo da precariedade do texto. É melhor porque você se habitua a ler e amanhã lerá outras coisas. Recentemente, li sobre o episódio de um jovem que mal sabia escrever e começou a ficar isolado de sua turma porque todo mundo se comunicava via e-mail. Ele ficou desesperado e aprendeu a escrever para passar e-mails para os colegas da turma. Então, é melhor assim do que se não houvesse nada.

Mas é claro que isso não pode ser um processo pernicioso, ou seja, a gente não pode reduzir o mundo a 140 toques. Tem coisa que pode ser escrita em 140 toques, outras não. Eu também acho que a grande reportagem não é necessariamente uma reportagem grande, mas apenas há assuntos que necessitam de mais espaço, de mais tempo, de mais apuração, ou seja, a diferença de uma matéria está em como foi feita a pesquisa, a apuração, o trabalho com o texto. Por que as matérias de jornalismo literário são melhores? Porque se tem mais tempo para trabalhar, mais espaço e isso exige uma qualidade maior na feitura do texto.

CULT – Sim, mas esse leitor habituado ao twitter ou aquele que lê notícias curtas na internet, esse tipo de leitor leria uma revista com boas e extensas reportagens? Ainda há espaços para publicações desse gênero?
Zuenir – Eu acho que sim. Por exemplo, quanto mais plural for o jornal, não só politicamente e ideologicamente, mas tecnicamente também, ele pode contemplar esse leitor, embora não seja hegemônico. Se você puder dar a esse leitor um pouco desse tipo de matéria, eu acredito que tem aceitação. Eu não sei o percentual desse leitor, mas existe, tanto que a revista Piauí está aí.


CULT – Ao invés de suporte, você acredita que essas novas tecnologias têm se tornado protagonistas das matérias feitas hoje em dia?
Zuenir – Para não fazer uma afirmação absolutamente radical, eu diria que há esse perigo, esse risco de se transformar um instrumento, um meio de pesquisa, em protagonista de uma matéria. Uma amiga minha atriz reclamou dizendo que há jornalistas que chegam com a matéria pronta, pegam algumas aspas e está tudo resolvido. Não é para isso. O Google foi inventado para começo de conversa, é para se iniciar a matéria a partir dele, mas não para se fazer tudo.




Zuenir: O Google foi inventado para começo de conversa, é para se iniciar a matéria a partir dele, mas não para se fazer tudo

CULT – Como falamos anteriormente, hoje vivemos sob um bombardeio de informações, e, como provável conseqüência disso, o jornalista acaba se preocupando muito com a informação e deixa de lado o apuro com a língua. Você acredita que falta por parte dos jornalistas um maior esmero com a língua portuguesa?
Zuenir – Eu acho que sim. Hoje nós temos uma crise da palavra escrita em todos os níveis. Não só no jornalismo, mas também na universidade, no congresso nacional, em todas as instâncias desse país nós vivemos uma espécie de desprezo pela expressão verbal. Ora, isso no jornalismo é grave, pois esse é o nosso material, essa é a nossa matéria-prima.
Nós temos três dimensões no jornalismo: estética, técnica e ética. A dimensão estética requer um bom texto, mas segundo as peculiaridades do jornalismo. Nem sempre um texto literário é um bom texto jornalístico. É preciso saber que há uma especificidade da nossa profissão.

CULT – Costuma-se ter uma visão romantizada e nostálgica do jornalismo praticado décadas atrás, especialmente com relação às grandes reportagens. Porém, embora enfrente muitas dificuldades, o jornalismo atual simboliza, a seu ver, uma evolução em relação àquele praticado nos anos 1950 e 1960?
Zuenir – Acho que sim. Primeiramente, porque vivemos em um mundo complexo, muito mais do que era nos anos 1950 ou 1960, portanto um mundo muito mais difícil de ser apreendido. É também complexo por conta da velocidade, dessa necessidade de se produzir informação em tempo real.

Existe algo que eu vejo especialmente entre jovens, que é uma espécie de nostalgia do não vivido. Olha-se para trás e se diz: “O jornalismo era mais romântico”. Não, o jornalismo era péssimo nos anos 1950. Basta ler o livro do Fernando Morais (Chatô, o rei do Brasil) para ver o que era. Ética, por exemplo, era uma palavra que não frequentava o vocabulário do jornalismo daquela época. Isso é muito recente. Sobre a condição do jornalista: ele era muito despreparado e por isso mesmo, como não tinha nenhuma autonomia profissional, ele precisava fazer bico. Era muito comum ter o jornalista cobrindo a repartição pública de onde ele era funcionário, tinha muito disso.
Então é preciso olhar para trás sem saudosismo e sem idealização. Teve muita coisa boa, mas não era tudo isso não. Há coisas melhores hoje. Por exemplo, hoje a ética é uma preocupação nas redações, ao contrário do era antigamente.

domingo, 30 de maio de 2010

INTERCOM E O DEBATE DE IDÉIAS

Em suma, nos grandes eventos acadêmicos, o que não pode faltar são as divergências, de fato salutares. Sem dúvidas, nem todos escrevem e lêem pelas mesmas cartilhas e isto torna estes momentos indispensáveis e fundamentais.
Imagem Luciana Machado
Prof. José Marques de Melo em palestra na abertura do evento
 












CIÊNCIA - A Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), realizada na UFG entre os dias 27 e 29, conseguiu o seu objetivo de levar conhecimento e debate científico à comunidade acadêmica (pesquisadores, professores e estudantes) do curso de comunicação social, dividido em suas habilitações: Jornalismo, Publicidade e Propaganda e Relações Públicas. O que chamou a atenção nos três dias foi a participação dos alunos de diversas instituições, não somente de capital do estado, mas de outros municípios, o que demonstra o interesse pela ciência, apesar dos signos dizerem o contrário. Evidentemente, que o número de pessoas participantes estaria aquém do desejado, entretanto, este não é um território a ser seguido por uma maioria em tempo de mercados fortes e imediatos.

Importante notar, entretanto, a busca pela ordenação de um discurso por parte de muitos intelectuais, possivelmente uma revisão às propostas de um marxismo que insiste com definições que contrariam as prerrogativas mercadológicas desse século. O ilustre professor Marques de Melo na sua abertura não deixa dúvidas quanto à importância das atividades nos laboratórios nas faculdades de jornalismo, considerando os anseios dos estudantes em buscar rapidamente o mercado ao termino do curso, como tem ressaltado o pensador em outros momentos, nem todos serão pesquisadores. Desta vez, citou a sua experiência própria de um aluno que não teve a experiência enquanto graduando dos laboratórios que, segundo ele, aproxima o futuro profissional com as lidas práticas, eficientemente.

Em uma análise, com ênfase na sua discussão histórica do jornalismo com a habilidade que lhe é peculiar Melo retratou a televisão, onde destacou Assis Chateaubriand (Diários Associados) e Roberto Marinho (Rede Globo), duas personalidades elogiadas pelos feitos à comunicação brasileira, mas ao mesmo tempo contestadas ante as suas maneiras pouco éticas de tratar a informação. O primeiro, durante sua existência profissional usou métodos com pouca lisura para tratar amigos e inimigos, inclusive chantageando empresários para obter recursos e formar o seu conglomerado, o maior da sua época, sem concorrência, além de seus textos que reverberavam interesses particulares, sobretudo na política, em detrimento da coletividade.

O segundo, por sua vez, é sabido a sua proximidade com os governos autoritários, a iniciar com o grande escândalo Globo Times Life, no início da década de 60, numa estratégia que deu certo de burlar as leis vigentes para obter vultosos recursos da empresa estadunidense, o que permitiu a Rede Globo torna-se o que é hoje, um grande conglomerado das comunicações. Importante destacar que não houve qualquer sanção devido ao apoio recebido pelos militares quando foi julgada pelo Congresso Nacional. Para tanto, leu pela cartilha dos governos autoritários que exterminou brasileiros contrários ao regime, inclusive jornalistas. O apoio do conglomerado aos militares durou até o último instante de sua derrocada em 1985.
Imagem de Luciana Machado
 Prof.  Nélia Del Bianco (UnB) discute as  mídias de  hoje.
O pensamento dos funcionalistas americanos, reproduzido pelo espanhol Ortega y Gasset, citado por Melo na abertura do evento, que tem uma visão de uma sociedade de massa, por vezes gera contestação e pode arremeter a imaginar a existência de indivíduos desarticulados e alienados, e para tanto se deve adequar o jornalismo, por exemplo, a esta proposta, de maneira a promover o fluxo de informação que permita a sociedade se formar conforme um sistema estabelecido. Deste modo, a mudança seria difícil e complexa diante de uma sociedade que pouco pensa e segue rumos estabelecidos pelos comunicadores, guiados por uma lógica, neste contexto, de mercado, a essência da modernidade. Conforme Gasset, no livro “A Rebelião das Massas” as minorias são indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados. A massa é o conjunto de pessoas não especialmente qualificadas. Não se entenda, pois, por massas só nem principalmente "as massas operárias". Massa é "o homem médio".

Em suma, nos grandes eventos acadêmicos, o que não pode faltar são as divergências, de fato salutares. Sem dúvidas, nem todos escrevem e lêem pelas mesmas cartilhas e isto torna estes momentos indispensáveis e fundamentais.